28/03/2022

A história da humanidade está sendo escrita. E, desde as mais remotas civilizações, observamos um ímpeto do ser humano pela busca da justiça, mesmo que com as próprias mãos. Assim foi a Lei do Talião, originalmente, descrita no Código Babilónico de Hamurabi (1770 a.C.) que preconizava o famoso "olho por olho, dente por dente".

Do mesmo modo, a perseguição e o martírio aos cristãos em Roma, e o extermínio os judeus pelo nazismo capitaneado por Adolph Hitler.

Sob essa perspectiva, a sociedade busca justiça a qualquer custo. E, ainda nos dias atuais, com todo o avanço civilizatório, em algumas situações, alguns, ainda vislumbram 

a retaliação, como única forma de justiça, como nos tempos mais remotos.

Há algum tempo temos observado o crescimento e fortalecimento das redes sociais, porém, com a pandemia, o afastamento social e a consequente necessidade de nos socorrermos ainda mais do ambiente virtual, temos notado uma exposição cada vez maior da vida particular nesses espaços que são verdadeiras praças públicas. Essa exposição midiática galopante traz consigo consequências, por vezes, deletérias. 

Na esteira do avanço no uso dessas ferramentas, lamentavelmente, temos sido expostos a "tribunais" cruentos, que são formados para condenar sumariamente os usuários.

Destarte, eclode a cultura do cancelamento virtual ou "cancel culture", do inglês, ganhou 

força no ano de 2019, mas desde 2017 já tinha algum espaço, quando a atriz Alyssa Milano, em sua conta pessoal no Twitter, sugeriu que todos que tivessem sofrido uma situação de assédio sexual usassem a "hashtag" #MeToo (eu também, em inglês). O objetivo foi denunciar o assédio sexual existente em Hollywood e, assim, expor os nomes do cinema que eram autores de abusos e violências sexuais.

O "cancelamento" implica em "deixar de seguir" ou "cancelar" alguém nas redes sociais. É um movimento de boicote em nome de uma pretensa "justiça moral e social". Esse movimento pode ser considerado um "cyberbulling" (assédio virtual)

ou sua derivação, que é o "cyberstalking" (perseguição virtual), em que, comentários hostis visam apenar o autor que teve um comportamento reprovável aos olhos desses julgadores tiranos.

Os "canceladores" se sentem moralmente superiores, e aptos a fazerem qualquer julgamento moral ou social. E, os "cancelados", como punição, sofrem uma exposição pública e um boicote coletivo.

Os "cancelados" mormente são figuras conhecidas do grande público, ou grandes empresas, mas, vemos que hoje, já não há mais nenhuma restrição e, esse "boicote" virtual tem alcançado qualquer pessoa, mesmo que desconhecida.

Esses "tribunais" ferem de morte o direito à livre manifestação do pensamento e à liberdade de expressão, promovendo um verdadeiro 'linchamento" público desses atores ou vítimas, se podemos assim qualificar. São discursos de intolerância, de ódio, de recriminação que impõem uma mordaça pluralidade de ideias e ao livre pensamento. 

Assim, os agentes virtuais instalaram uma verdadeira ditadura do pensamento, na qual ditam o que pode e o que não pode ser dito, com um avassalador embargo da manifestação do livre pensamento.

Os usuários das redes sociais sentem-se no direito de ditar o que é o politicamente correto ou incorreto, não levando em conta direito de expormos ideias e posicionamentos individuais. Há intolerância total por parte desses "julgadores" e um "massacre" público a qualquer usuário que se manifeste contrário a uma pretensa maioria.

Usando o escudo do politicamente correto, vemos discursos de ódio, intolerância, ameaças, crimes contra a honra - calúnia, difamação e injúria (artigos 138,139 e 140 do Código Penal Brasileiro) - atitudes mascaradas de legítimas, mas que são totalmente alheias ao Direito, mais especificamente, às liberdades individuais elencadas no artigo 5- da Constituição Federal.

O "cancelamento" pretende se vestir de justiça, mas, na realidade, é uma ação travestida de 

justiça, que gera prejuízos de toda ordem, pois, esses agentes são verdadeiros justiceiros desprovidos de conhecimento real dos fatos, empatia, solidariedade e amor ao próximo. O comportamento desses justiceiros aceita a violação de tantos outros direitos que, na verdade se trata de mera vingança, crueldade ou desamor.

Na contramão do que muitos acreditam, o ambiente virtual não é "terra de ninguém".

Entretanto, com todas as informações que nos são ofertadas, alguns ainda insistem em acreditar que a punibilidade não alcança essa seara e desafiam o ordenamento jurídico.

A liberdade de expressão não pode atingir a dignidade da pessoa humana, que é a base do ordenamento jurídico pátrio. Ela não é um direito ilimitado. Aliás, cumpre salientar que, não existe direito irrestrito ou absoluto. O uso excessivo desse direito pode ferir outros, também constitucionalmente garantidos, e pode caracterizar crimes elencados no ordenamento jurídico pátrio. E, para muito além dos prejuízos patrimoniais –uma vez que já temos notícia e que, contratos de trabalho foram interrompidos e até rompidos - há também os danos psicológicos e emocionais, destituição da imagem e reputação pessoal, muitas vezes, construída com anos de trabalho e investimento pessoal árduos.

O Estado Democrático de Direito não dá vasão à vingança privada; ao contrário disso, prega que só Estado tem a titularidade do direito de punir, resguardando ao acusado o direito ao contraditório e ampla defesa, garantidos também na Constituição Federal (art. 55 LV).

Não podemos aceitar que essa falsa busca pela justiça continue abalando a paz social e as liberdades individuais, bem como colocando em risco, inclusive, a integridade física, e até a vida desses atores sociais. Sim, a vida! Porquanto, por vezes, os ataques odiosos são tão violentos que extrapolam o ambiente virtual e encontram espaço na vida real, ocasionando lesões físicas e até a morte. É premente a necessidade de encontrarmos um equilíbrio nas relações, sejam reais ou virtuais.

A "internet" não pode servir de instrumento de Segregação ou de interdição ao debate

de ideias. Ao contrário disso, precisa ser utilizada como ferramenta de união, de estímulo à diversidade de pensamentos, uma vez que conecta pessoas ao redor de todo o planeta através de suas ondas.

Os usuários precisam distinguir entre o que é uma crítica amparada pela liberdade de expressão e o "linchamento" público que gera danos, muitas vezes de difícil ou impossível reparação.

Mister que haja ponderação ao criticar ou manifestar a sua opinião numa sociedade que prega a justiça, mas que está cada dia mais intolerante à diversidade de ideias.

Biblicamente falando, sabemos que amor ao próximo é mandamento divino. Somos discípulos de Jesus e devemos estar sempre prontos para amar, perdoar e levar as boas novas do Evangelho.

Não nos portemos como os fariseus, que levaram a mulher adultera até Jesus, para que o pecado dela fosse exposto publicamente e ela fosse "cancelada". Como resposta, Jesus não negou o erro da adúltera, mas a perdoou dizendo: "Também eu não a condeno; vá, e não peques mais" (João 8.11).

 

 

Fonte/Autor: Prª. Andrea Brocanelli (Advogada e pastora auxiliar na IEQ em Araras)

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